Quase sempre, e isso se tornara comum, duas pessoas de sexo
oposto se cruzavam pelas ruas da pequena cidade. Em cada bom dia ou boa tarde
era inevitável a troca de olhares. Ele se sentia tão só... ela, embora tivesse
tido um grande amor, sofrera grande desilusão e, num processo inverso aos de
contos infantis, o príncipe se transformara em sapo. Ora! Dois corações, ainda
que não se conhecessem, buscavam uma só coisa: alguém para dividir a solidão.
Na verdade, quem de nós não busca um outro, um alguém, para
partilhar a vida, um alguém que mesmo pelas lacunas causadas pela distância é
capaz de se fazer presente e, numa ligação, numa carta, num e-mail ou ainda
numa mensagem pelo celular ou nos meios de comunicação social, tem o poder de
amenizar nossa dor, tornando-se companhia em meio a solidão.
Lembro-me que certa vez ouvi de
um amigo que passava por um momento muito difícil: “ao ver você chegar me senti
mais aliviado porque parece que dei um pouco de minha dor para que você
sofresse comigo”. E, talvez, relacionar-se seja isso: encontrar alguém com quem
dividir a dor, com quem viver a solidão. Não quero aqui demonstrar um
relacionamento interesseiro e dependente, mas sim uma convivência pautada na
alteridade, e, que acaba por sanar o desejo mais antigo e primata de todo ser
humano: relacionar-se, e assim fazê-lo de modo sadio.
Gosto do poema de Cora Coralina
que diz: “não sei se a vida é curta ou longa demais para nós, mas sei que nada
do que fazemos tem sentido se não tocamos o coração das pessoas” deveras, temos
passado pela vida de inúmeros personagens desta nossa sociedade, fizemos
amigos, amamos muito, e...ah! Chega uma hora na qual nos separamos, cada um
segue seu caminho... mas no coração a marca intocável do amor recebido, da
solidão compartilhada.
Mas, voltando aos rápidos
cumprimentos daquele homem e daquela mulher... num dia, que tinha todas as
características de um dia qualquer, algo diferente aconteceu... por descuido da
moça, na hora do “bom dia” costumeiro, com a bolsa aberta, nas mãos espelho
para maquiagem, fixou os olhares no olhar do rapaz e bem na hora do cumprimento
não enxergara a lixeira que lhe trancava passagem e tropeçou deixando o espelho
se estraçalhar ao chão.
- Bom di... spleft... oh! Meu
Deus, disse em balbucios o rapaz. Amparando a moça pelo braço juntos olharam os
pedaços ao chão, cena curiosa se seguiu: ambos se viam nos diversos estilhaços.
Pra encurtar a história, bonito romance nascera de um momento tão desatento.
Veio uma amizade, depois o namoro, casamento... e enfim, já de idade bem
avançada a morte os alcançou, levou por companhia a mulher... Ao homem
novamente a solidão. Aquela de quem fugira nos tempos de juventude encontrara
novamente. As horas mais difíceis de seus dias eram aquelas da noite em que
todos vão embora, o telefone já não toca mais, as luzes se apagam, tudo fecha,
tudo dorme, no entanto, o coração faz vigília, falando consigo mesmo, vivendo
sua solidão.
E assim para todos nós, chega uma
hora na vida na qual a gente se depara com a solidão...o estar só que devora,
que parece nos roubar o direito de nos relacionarmos...aquele momento em que o
sol já se escondeu, e, tarde da noite, você se pega ou se pegará sozinho,
consigo mesmo... sem um outro, sem um outro que tanto amou e se doou. E aí? Ah!
Aí vem a grande amiga dos homens, a saudade, e num sobressalto invade nossa
mente, nos permitindo reviver momentos tão felizes. Ela é um instrumento da
memória que nos permite, ainda que por um pequeno momento, viver novamente
aquele instante de alegria e solidão compartilhada.
A saudade fizera amizade com a
solidão e se tornaram companheiras do vovô. Durante o dia: netos, afilhados,
gente, música; a noite, com o breu e o silêncio, vinham sentar ao seu lado no
sofá a saudade e a solidão. E depois dessa amizade, ambas se tornaram menos
dolorosas de se conviver e, toda noite, relembravam a cena estabanada de sua
falecida esposa. Então o velho revia sua história e podia ver que, agora, ao
findar de sua vida, cada estilhaço do espelho que se quebrara no dia da
primeira troca de olhares previu cada dia do seu futuro.
Assim, fica pra pensarmos
naqueles momentos de nossa solidão: ainda que diante do espelho notemos apenas
nosso reflexo, na menina dos olhos... se notarmos bem... é possível ver o
reflexo do outro ou dos outros muitos que amamos e que por mais longe que
possam estar sempre, de algum modo, fazem-se e se farão presente em nosso
passado, presente e futuro.
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