domingo, 21 de abril de 2013

Perfeita combinação


Quase sempre, e isso se tornara comum, duas pessoas de sexo oposto se cruzavam pelas ruas da pequena cidade. Em cada bom dia ou boa tarde era inevitável a troca de olhares. Ele se sentia tão só... ela, embora tivesse tido um grande amor, sofrera grande desilusão e, num processo inverso aos de contos infantis, o príncipe se transformara em sapo. Ora! Dois corações, ainda que não se conhecessem, buscavam uma só coisa: alguém para dividir a solidão.

   Na verdade, quem de nós não busca um outro, um alguém, para partilhar a vida, um alguém que mesmo pelas lacunas causadas pela distância é capaz de se fazer presente e, numa ligação, numa carta, num e-mail ou ainda numa mensagem pelo celular ou nos meios de comunicação social, tem o poder de amenizar nossa dor, tornando-se companhia em meio a solidão.
Lembro-me que certa vez ouvi de um amigo que passava por um momento muito difícil: “ao ver você chegar me senti mais aliviado porque parece que dei um pouco de minha dor para que você sofresse comigo”. E, talvez, relacionar-se seja isso: encontrar alguém com quem dividir a dor, com quem viver a solidão. Não quero aqui demonstrar um relacionamento interesseiro e dependente, mas sim uma convivência pautada na alteridade, e, que acaba por sanar o desejo mais antigo e primata de todo ser humano: relacionar-se, e assim fazê-lo de modo sadio.
Gosto do poema de Cora Coralina que diz: “não sei se a vida é curta ou longa demais para nós, mas sei que nada do que fazemos tem sentido se não tocamos o coração das pessoas” deveras, temos passado pela vida de inúmeros personagens desta nossa sociedade, fizemos amigos, amamos muito, e...ah! Chega uma hora na qual nos separamos, cada um segue seu caminho... mas no coração a marca intocável do amor recebido, da solidão compartilhada.
Mas, voltando aos rápidos cumprimentos daquele homem e daquela mulher... num dia, que tinha todas as características de um dia qualquer, algo diferente aconteceu... por descuido da moça, na hora do “bom dia” costumeiro, com a bolsa aberta, nas mãos espelho para maquiagem, fixou os olhares no olhar do rapaz e bem na hora do cumprimento não enxergara a lixeira que lhe trancava passagem e tropeçou deixando o espelho se estraçalhar ao chão.
- Bom di... spleft... oh! Meu Deus, disse em balbucios o rapaz. Amparando a moça pelo braço juntos olharam os pedaços ao chão, cena curiosa se seguiu: ambos se viam nos diversos estilhaços. Pra encurtar a história, bonito romance nascera de um momento tão desatento. Veio uma amizade, depois o namoro, casamento... e enfim, já de idade bem avançada a morte os alcançou, levou por companhia a mulher... Ao homem novamente a solidão. Aquela de quem fugira nos tempos de juventude encontrara novamente. As horas mais difíceis de seus dias eram aquelas da noite em que todos vão embora, o telefone já não toca mais, as luzes se apagam, tudo fecha, tudo dorme, no entanto, o coração faz vigília, falando consigo mesmo, vivendo sua solidão.
E assim para todos nós, chega uma hora na vida na qual a gente se depara com a solidão...o estar só que devora, que parece nos roubar o direito de nos relacionarmos...aquele momento em que o sol já se escondeu, e, tarde da noite, você se pega ou se pegará sozinho, consigo mesmo... sem um outro, sem um outro que tanto amou e se doou. E aí? Ah! Aí vem a grande amiga dos homens, a saudade, e num sobressalto invade nossa mente, nos permitindo reviver momentos tão felizes. Ela é um instrumento da memória que nos permite, ainda que por um pequeno momento, viver novamente aquele instante de alegria e solidão compartilhada.
A saudade fizera amizade com a solidão e se tornaram companheiras do vovô. Durante o dia: netos, afilhados, gente, música; a noite, com o breu e o silêncio, vinham sentar ao seu lado no sofá a saudade e a solidão. E depois dessa amizade, ambas se tornaram menos dolorosas de se conviver e, toda noite, relembravam a cena estabanada de sua falecida esposa. Então o velho revia sua história e podia ver que, agora, ao findar de sua vida, cada estilhaço do espelho que se quebrara no dia da primeira troca de olhares previu cada dia do seu futuro.
Assim, fica pra pensarmos naqueles momentos de nossa solidão: ainda que diante do espelho notemos apenas nosso reflexo, na menina dos olhos... se notarmos bem... é possível ver o reflexo do outro ou dos outros muitos que amamos e que por mais longe que possam estar sempre, de algum modo, fazem-se e se farão presente em nosso passado, presente e futuro.

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