quinta-feira, 21 de março de 2013

Uma amizade para recordar


Temos amigos de todos os tipos, mas cá pra nós, ter amigo artista é um privilégio para poucos. Da coxia dos teatros para o palco da minha vida tive a graça de conhecer uma artista. Certa vez, lembro-me bem, ficamos uma semana juntos realizando um trabalho voluntário. Ah! Quanto aprendizado... numa das noites, ambos cansados pelo exaustivo serviço, veio, por parte dela, uma proposta, algo que a relaxava muito, uma técnica que aprendera nas aulas de teatro: sentir o crânio do outro... pensei: será que vai dar certo? Bem, fui eu me arriscar a segurar sua cabeça e sentir seu crânio.

Depois de receber as instruções, fiz como me dissera e que experiência fantástica... como pesava! Ao vê-la quase dormir em minhas mãos imaginei que o tal relaxamento funcionasse mesmo. Ansioso pela minha vez, soltei lentamente sua cabeça no colchão. Aos poucos ela foi abrindo os olhos como se fosse outra pessoa, tão logo eu disse: - agora é minha vez!

Deitei-me e ela lá, segurando minha cabeça e reexplicando a tal técnica disse: “esse é um exercício de cuidar do outro, por isso precisa ter muito cuida...” suas palavras sumiram do meu ouvido e eu só ouvia ribombar “exercício de cuidar do outro”... bem, ao término eu estava mesmo relaxado, mas com o coração inquieto com a frase, mas sobretudo com a palavra “cuidar do outro”.

Há um momento na vida que nosso maior desejo é se sentir cuidado por alguém. Disseram-me, um dia, que cuidar de alguém é ser Deus para essa pessoa. Hoje, olhando pra esse fato que me ocorrera, vejo que é preciso ser Deus para os outros, mas como é bom encontrar um outro que nos mostre Deus.

Senti-me cuidado naquela noite. Dentro em mim algo dizia que eu precisava retribuir tal carinho, tal cuidado. Novo dia nasceu, saímos para o serviço, qual não foi a surpresa, por uma bolada na mão ela torceu o dedo... gelo, compressa... tudo em vão, passado um dia do ‘acidente’ o dedo começara a ficar roxo e disse: “vamos ao médico!”

Chegamos à Santa Casa de Misericórdia daquela cidadezinha, que como todo hospital era fria, com cara de casarão abandonado, não que fosse mal cuidado, mas a cor gélida e morta das paredes causava medo, pensando que isso pudesse trazer mais sofrimento ainda pra amiga que eu acompanhava, logo me pus a fazer piadas. Enquanto esperávamos o atendimento do médico saiu da sala um senhor a dizer: hoje vou tomar uma na veia! Olhei pra minha amiga que já temia ter que enfrentar também a agulha e falei, na tentativa de lhe arrancar um sorriso: antes tomar na veia do que tomar na bunda, ela sorriu e logo depois ouvimos o médico a chamá-la.

Entramos na sala do doutor que logo deu o diagnóstico e receitou uma injeção para aquela hora e um remedinho para os dias seguintes. “injeção?” – perguntou ela arregalando os olhos para o meu lado... não lembro muito o que aconteceu depois, mas na sala do médico, lembro-me que ele disse: “não vai doer nada, caso doa aperte firme a mão dele” e olhou para mim.

Bem, descobri que minha amiga tinha um grave problema com agulhas, não conseguiam ser amigas de jeito maneira! Fiz de tudo pra que ela esquecesse que fosse tomar a bendita da injeção, mas quando entramos na salinha de vacina, com as calças arriadas a pobre coitada não teve jeito... tomou no traseiro! Sabe que ela nem apertou tanto minha mão, mas fiz questão de apertar a dela pra que soubesse que eu estava ali. Talvez estivesse nesse gesto uma forma de retribuir o cuidado.

Saindo do hospital ela mancava um pouco e até brinquei que escreveria sobre a cena, porque tirando os medos tudo se passou de modo engraçado. E agora me pego aqui escrevendo sobre o ocorrido porque vejo no cuidar a maior maneira de se expressar o amor. Ah!... e como eu precisava falar de amor... Viver tudo isso foi preciso para que eu aprendesse a amar. Não que eu não soubesse, mas é que as vezes a gente esquece de como se ama.

Se eu pudesse mudaria todas as formas de se pedir em namoro, de se pedir uma amizade. Para mim namorados e amigos não diriam mais: quer namorar comigo, ou quer seu meu amigo? Mas sim diriam: quer cuidar de mim? Ou deixa eu cuidar de você? E penso que amar é isso: estender a mão ao outro até que ele se sinta cuidado.

E então entendi que o exercício de cuidar é justamente como acontecera com o crânio: você fecha os olhos e confia nas mãos que lhe amparam. E quando, pelos inúmeros motivos que a vida nos proporciona você não sentir mais essa mão é hora de abrir os olhos e você se percebe diferente, relaxado, um sentimento de ter sido cuidado por alguém lhe invade e, ainda que esse alguém não esteja mais próximo para cuidar de você, repito, ainda que essa mão não lhe segure mais, você agora está pronto para cuidar dos outros. Só quem já foi amado saberá como amar, e nessa troca de cuidado e amor sempre saímos diferentes porque uma pessoa que ama nunca deixa seu amante sem modificar algo em sua história. 

5 comentários:

  1. Ecantada com a linda maneira que você se expressa. Seus textos sempre me tocam muito, mas esse em especial, me tocou demais. Parabéns por esse dom vindo de Deus.

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    1. Obrigado Amanda! Em breve novos textos por aqui! Coragem!

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  2. Como é bom ler essas histórias, porque sempre acaba marcando algo em nossos corações.E nos faz refletir... E o que mais me tocou foi: "Quer cuidar de mim? Ou deixa eu cuidar de você? E penso que amar é isso: estender a mão ao outro até que ele se sinta cuidado. "
    E como é bom cuidar de alguem, se sentir amado e importante um para o outro! Que Deus o abençõe!
    Lindo texto!!
    Abraço!

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  3. Olá meu querido!!!

    Passei e resolvi registrar minha saudade, admiração e dizer que é sempre uma grata surpresa ler os seus textos.
    Estou sempre aqui para me brindar com suas lindas reflexões que abastecem nossos corações.

    Cuidar do outro, essência de nossa vida cristã. Valor que deveria estar acima de todas "alegorias" e "paramentos" que rodeiam a prática de nossa fé.

    Nesta manhã, mais uma vez, Deus me visitou pelo exercícios de seu dom.

    Tamu Junto!!!
    Zé Duarte

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  4. Saudades irmão... Parabéns por mais este belíssimo texto. Abraços. Santana

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